Tornar-se

Nasci mulher e negra. No entanto, o racismo impõe um processo de ‘‘embranquecimento’’ tão rígido, que em minha certidão de nascimento, embora meu pai negro, fui registrada branca. Nem culpo a funcionária do cartório, o procedimento se tornou uma convenção tão forte, quase imperceptível na época.

O que o mundo racista não espera é que tenhamos origens. Tentam nos convencer disso. Mas nós temos! Eu tive minha avó. Uma mulher negra que lembrava minha negritude toda manhã ao despertar. Um ser complexo e generoso. Através das suas histórias me aproximei da cultura africana, jamais perdendo o elo com a ancestralidade. Fui crescendo e o termo mulata me perseguia. A sociedade não desejava me aceitar negra. Alguns até me chamaram de morena. Com o tempo, o único termo que não me incomodava era ser chamada de indígena, pois tenho esta ascendência também.

A luta foi árdua na escola. O cabelo começou a protestar também. Queria liberdade e espaço… Meus olhos brilhavam ao participar dos eventos no Clube Social Negro Seis de Maio. Ali me sentia em casa. O coração acelerava ao ver a escola Acadêmicos de Gravataí na passarela da Avenida José Loureiro da Silva. E os racistas se contorciam de raiva.

Minha avó era religiosa de matriz Africana. Cresci acompanhando seus rituais e observando cada detalhe. Aprendi a combater os intolerantes desde muito cedo. Minha avó materna era de origem alemã, católica fervorosa. Embora não tivessem a melhor das relações, havia um bom convívio, gerando um legado valioso de respeito à diversidade. Minhas rainhas conduziam com sabedoria suas famílias. Na oralidade da avó paterna, a certeza de que precisava ser forte, pois o sistema seria implacável. Meu pai me passou conhecimento. Fui blindada em meio a muito amor. As armas certas e a promessa de resistir.

Não me julgava bonita, parecia óbvio que precisaria de muito esforço para assegurar algum espaço, ou seja, o racismo estrutural estava atingindo seu objetivo, fazendo eu me sentir inferior aos outros.

Tinha aproximadamente quatorze anos quando iniciei o curso de Magistério. Um investimento que exigiu muito de meu pai, dinheiro suado – lembrança que carrego até hoje – quando nas datas de vencimento das mensalidades, ele contava literalmente moeda por moeda. Era um momento sagrado, quase um ritual. E a adolescente calava no peito mais um precioso ensinamento.

Na busca por referências encontrei, em uma das minhas inúmeras investidas na biblioteca, um livro sobre Martin Luther King. Lembro do encantamento pela trajetória do reverendo. Nascia ali a ativista. No início, não percebi o caráter estratégico do discurso. Era uma adolescente deslumbrada com a fala potente e aparentemente pacífica. No entanto, o conhecimento foi a ferramenta certa para reescrever minha história de jovem negra, pobre e fora dos padrões estéticos impostos pela sociedade.

Sem a presença de minha avó paterna, faltava-me o elo com a ancestralidade, que de uma certa forma o reverendo restaurou. Despertava em mim o ser político, a necessidade pelo debate e o exercício do pensamento crítico. Martin Luther King me resgatou do comodismo e me afastou da zona de conforto que o mundo racista oferece. Retomei a procura por algo que nem mesmo eu sabia exatamente o que era.

Casei aos 25 anos e tive uma menina e um menino. A maternidade é uma das experiências mais desafiadoras e complexas que um ser humano pode enfrentar. Meu filho traz a negritude na pele, e tive que prepará-lo para o racismo estrutural. As conversas eram constantes. O medo do futuro, a angústia em saber que ele estaria exposto ao mundo, nem sempre em minha companhia. Aos poucos ele se tornou um ativista, homem consciente do seu valor. Minha filha ama sua cultura africana, me orgulha seu posicionamento crítico e engajamento na causa.

Trabalhei durante dez anos com Educação de Jovens e Adultos, foi em uma sala de aula que conheci a aluna que me questionou sobre a temática dos Lanceiros Negros, assunto que despertou a pesquisadora em mim. Posteriormente o fato seria a motivação para o surgimento da minha obra infantil O Lanceirinho Negro. Fui nomeada professora em um município de forte colonização alemã. Era a única professora negra da escola. Crianças negras se sentiam acolhidas com a minha presença. Foi uma experiência muito forte que desencadeou conflitos internos, sendo a causa do resgate da minha própria essência.

Retornei à faculdade, depois de sete semestres de Direito, retomando o caminho da educação e concluí o curso de Letras. Novas perspectivas surgiam, comecei a escrever esquetes e atuei também como diretora de teatro estudantil. Minha produção começava a contemplar a representatividade racial para combater as injustiças sociais. A teoria de Paulo Freire é presença constante em minhas práticas pedagógicas, contudo desejava mais. Certo dia ouvi falar de Angela Davis, Sueli Carneiro e Lélia González. Meu coração bateu descompassado. Ler a obra Mulheres: Gênero e Classe da filósofa de Angela Davis foi uma experiência significativa em minha vida pessoal e profissional. Teria encontrado o que procurava desde menina?

A verdade é que a busca é constante, nunca acaba. Cada experiência vivida agrega descobertas que podem redefinir conceitos e visões de mundo. Talvez seja exatamente isso, a necessidade de renascer a cada instante, tanto em práticas pedagógicas, como na valorização da ancestralidade ou no exercício do pensamento crítico.

Hoje sou integrante do Coletivo de Escritores Negros, fato que muito me orgulha. Sou referência para novas gerações, sei da importância e da responsabilidade que isso acarreta. Sou preta consciente da ancestralidade que carrega e imensamente grata por todos aqueles que vieram antes de mim e me possibilitaram oportunidades até então inimagináveis. A luta é árdua, mas temos uns aos outros, fato que nos fortalece e impulsiona para o combate ao racismo e a busca por representatividade.
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