Essa minha cara redonda de pau é presente de mãe. Foi de mãe que herdei essa cor de cuia, o sorriso facinho, os olhos intrometidos no todo dos outros. Veio de mãe esse acreditar desconfiado, a pia limpa, música antiga, o tamanho da minha altura. Minha mãezinha, bendita e cheia de graça, ganhou a alcunha de “preta”, logo que se casou. A família, por parte de pai, é toda branca. Dei-me conta agora, ao escrever essas mal traçadas, que sou o único dos primos com raízes negras nos traços físicos. Isso me rendeu raros privilégios, diversos constrangimentos, algumas curiosidades, muitas dúvidas e alegrias ao longo da vida.
Um tio imprestável, digo, emprestado, casado com uma prima da minha mãe, negro de pele clara, sempre que nos encontrávamos, dizia, com intenção de me provocar, “fala, mais preto que eu!”. Menino, ficava confuso, não compreendia a simbologia contida na frase. Também na pelada de final de ano no campo do Continente, a tradicional partida: os pretos x os brancos, nunca entendi, mas me submetia. Jogava meio tempo pra cada lado, a pedido de ambos os times. Para justificar a contratação, o treinador dos brancos pedia que mostrasse a palma da mão. E todos riam no vestiário… Menos eu.
O estigma que atravessa a cor da nossa pele não passa de uma convenção. Em sociologia, o conceito de estigma social está relacionado com as características particulares de um grupo ou indivíduo que seguem o oposto das normas culturais tradicionais. Tudo o que não é um padrão sócio cultural é tido como um estigma. Por exemplo, os doentes mentais, negros, homossexuais e membros de algumas doutrinas religiosas, como os judeus, são considerados estigmas para determinadas sociedades. Como a nossa: preconceituosa, machista e violenta. Minha pele fala por mim antes mesmo que eu me pronuncie. Só fui entender já adulto.
Saber-se negro, compreender o que isso significa, com toda sua carga e maravilha, foi a herança mais importante que recebi. A ironia no meu subtexto, essa atenção em tudo que ouço, aprendi foi com a minha mãe preta, dinda de toda a gente. Minha cor, minha cara. É de mãe a minha altivez, minha gana. Dela, todo o meu tesouro, essa paixão pelos meus, pelos outros. Foi mãe que me deu juízo – esse que eu não agarrei – expôs-me um lar, a diferença que faz a família. Mãe que me fez versador. Foi de mãe, da coragem e da força da minha ancestralidade que ganhei, para gastar como quiser, esse mundo todinho pra mim.
