Como se fosse possível acariciar meu próprio coração

Hoje ninguém vai me ferir.
Hoje ninguém vai me ferir.
Hoje ninguém vai me ferir.

Assim renovo a decisão de levantar da cama, da mesa, de qualquer lugar.

Todo dia é tempo de defender meu corpo.

Estou sempre em busca deste instante sem mágoas, mesmo antes de escovar os dentes, tomar banho; mesmo antes do cheiro irônico do café, quando o silêncio e a voragem última da noite ainda imperam.

Às vezes, é preciso apenas um piscar de olhos, um baixar de guarda, pensamento ruim, e isso eu não permito ao meu corpo.

Digo não usando sua própria boca, a língua roçando atrás dos dentes, as bochechas projetando a voz.

Dizer não é o melhor que faço.

Me devolver às águas.

Porque nas águas tudo fica mais vivo; porque tudo fica mais bonito e mais leve depois que as águas passam pelo corpo, que um sorriso toma conta do rosto, junto com o piar dos passarinhos no ouvido. É o dia, e sou grato por estar inteiro aqui outra vez.

Não importa o que digam, amanhecer em mim é oração.

Aprendi a rezar o corpo presenciando minha mãe Virginia Maria Caetano. Sua cabeça sempre pronta a se acudir. Suas mãos sempre aquecendo os dias frios. Seus olhos adiante, o último traço de domínio e resistência.

Morávamos numa casa pequena entre os abacateiros. Eu apenas uma parcela divina pairando sobre o tempo, mas já vinha nela impresso. Nós sempre estamos registrados em ancestralidade, pra lembrar que somos aqueles que já foram, os hão de ir e voltar.

Minha mãe é dessas de dar equilíbrio ao mundo. De abrir as pernas e fazer futuros, não sem compreender com altivez o que pode suportar. Sua altivez me ensinou que chorar faz parte da vida. É a forma que o corpo tem de renovar águas, lavar pensamentos, cicatrizar coração.

Vai sofrer, disseram os olhos do médico. Vai ser bom pra reparar mundo, disseram os olhos de minha mãe. Sei disso, porque fui me parindo pelos anos nas águas dos olhos dela.

É a esta mulher Aya que meu corpo comunga, espelha. É dela que me impregno de saberes, memória, sensibilidades. Saberes não escritos, saberes que só podem ser aprendidos ao amanhecer, no tempo do tempo.

Assim meu corpo sem útero foi feito pra brotar sementes, cerzir, abraçar gentes, galinhas, cachorros e palavras; o destino que assumi antes de vir, na convicção que me precipitei nas águas, cruzei mundos até aqui, onde continuo a me banhar.

Onde estou homem, negro e gay.
Dissonância, amparo e testemunho.
Colapso, rasura de palavras, encruzilhada do presente.
Posição de meus pais em mim.
Assunção da própria posse.

Onde todo dia é tempo de defender meu corpo coletivo.

Mas há em mim também o rasto da fuga dos homens, e compaixão. A compaixão veio quando também eu me tornei homem, o homem que consegui ser, o homem que sou hoje e o homem que serei amanhã.

Um homem que segue conjugando a palavra dos que vieram antes: ‘‘liberdade é não ter medo’’, ‘‘a gente combinamos de não morrer’’, ‘‘nós somos aqueles por quem estávamos esperando’’ e ‘‘é tudo pra ontem’’.

Um homem que segue dizendo não, domando pensamentos, repetindo: deseje, ame, não tema.

Um homem que segue caminhando ao encontro daquele instante sem mágoas.

Assim me aprendo, me chamo como se bem me quisesse. E bem me quero. Cada dia mais. Sem fugas. Só a encruzilhada. E este corpo. E a travessia de cada um que me cruza, revolve e fertiliza.

Como se fosse possível acariciar meu próprio coração com as mãos limpas, as mãos quentes que herdei de minha mãe.

E é.

Aqui.

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