A televisão da sala estava desligada desde a noite anterior, quando um temporal atacou o bairro deixando-o sem luz. Geralmente isso acontecia quando a chuva era demais e parte da região norte ficava afetada pela falta de energia.
Na preocupação de não acordar no dia seguinte e seguir para o seu compromisso, Robson confiou apenas em seu celular. A bateria tinha carga suficiente para a noite toda e, com certeza, parte da manhã. Não teria erro. Era só colocar o aparelho, de procedência duvidosa, comprado de um amigo da sua vila, para despertar na hora que precisava e sairia em tempo de pegar seu ônibus para a entrevista de trabalho. Como o dinheiro estava curto, utilizava-o sempre como despertador e, quando estava em algum ambiente com wi-fi livre, aproveitava para mexer em suas redes sociais.
A noite passou tranquila pelas suas bandas. Sem luz para as atividades noturnas, todo mundo decidiu ficar por casa, até mesmo aqueles cujas visitas ao bar do seu Antônio eram frequentes. Não havia sinal de pessoas na rua, ou mesmo o barulho costumeiro de qualquer música nas casas ao lado. Nem a diversão o povo tinha como garantida.
Era cedo da manhã quando um som delicado e contínuo começou a tocar no celular usado de Robson. Ele acorda ainda relutante, mas sabendo que era necessário deixar sua cama. Caso não saísse, talvez lhe faltasse sono no futuro, sem o dinheiro no bolso.
Estende então o braço para ligar as luzes do quarto e pegar a única roupa do armário, a mais ajeitada que tinha, porém ao fazer o movimento com os dedos de cima para baixo no interruptor, percebeu que a luz ainda não voltara.
Chegando ao banheiro, ainda em gesto involuntário, ligou o chuveiro se esquecendo de que não teria água quente. Foi então que despertou numa única jarrada, obrigando-se a fazer movimentos rápidos e sair o quanto antes daquele box gelado, coberto apenas com uma cortina de poliéster.
Na parada de ônibus, os poucos que esperavam pela condução não tinham outro assunto: ‘‘Inferno, que não tem luz ainda. Minha geladeira tá lá, lotada. Vai estragar tudo se não voltar logo’’; ‘‘Nem me fala, guria. Toda vida é a mesma bosta. Demoram um século pra arrumar’’; ‘‘E as criança em casa! Nem pro colégio dá pra mandar’’.
Robson tinha certeza de que as crianças não se importavam de não irem para a escola, mas talvez ficar sem luz não fosse a maior diversão.
Em pouco tempo, não escutava mais as reclamações das pessoas no ponto, pois seu ônibus chegara e já o levava para seu destino. De pé, percebeu que a maioria na condução parecia ainda estar acordando. Não demorou muito e chegou aonde precisava. As horas estavam a seu favor. Mais algumas quadras andando, do camelódromo até o local, e estaria pronto para a entrevista. Na tentativa de chegar com alguns minutos de antecedência, e assim impressionar seus possíveis futuros chefes, acentuou o passo.
Pelo horário o centro ainda não estava cheio como o habitual, mas a movimentação já o obrigava a desviar das pessoas. Ia num ritmo bom quando seus passos longos foram interrompidos por um outro homem. Este vestia uma farda de cor acinzentada e parecia ser uns 5 cm mais alto que ele. Causava um efeito de imponência a quem passava por perto, principalmente pela arma que ostentava em sua cintura. Observando-o de cima a baixo, iniciou um inquérito no meio da Salgado Filho: ‘‘Tava correndo por quê? – Deixa eu ver teus documentos. – Hum, sei … – Tua cara não me é estranha… – Abre essa mochila, então! – Que celular é esse? – Onde tu achou dinheiro pra comprar isso? – E essa papelada? – Quem vê acha que estuda…”.
Nesse interrogatório interminável, Robson evitou fazer qualquer tipo de movimento mais brusco. Permaneceu, então, apenas com seu olhar firme, respondendo a cada pergunta. Abordagens como aquelas eram “comuns”, e o procedimento deveria ser sempre o mesmo. Naquela hora, só se preocupava com a entrevista. ‘‘Tá olhando o celular por quê? Tá com pressa, amigão?’’ Balançava a cabeça negando, mesmo sem nenhuma segurança no seu próprio ato. Vendo as pessoas ao redor o olharem com desconfiança enquanto sofria esta humilhação, o tempo passava cada vez mais, deixando outra oportunidade ir embora.
‘‘Então vamo fazer o seguinte. Tô vendo que tu tá de boas. Tem nada aqui, não. Mas não me aparece mais por aqui.’’ Como se a humilhação de ser interpelado na frente de todos não bastasse, ainda teve que recolher a carteira e os papéis que havia impresso por 0,10 centavos cada na venda da dona Zefa. Era seu currículo, agora amassado. Pressionando os papéis sobre o peito, tentou desamassá-los. Era uma tarefa quase impossível. O estrago já havia sido feito.
Liberado, deu mais uma olhada para o seu celular. Já passava 10 minutos do horário da entrevista. Estava atrasado. Para não se desclassificar, correu o mais rápido que pôde com a mochila pendurada em apenas uma das alças. Conforme corria, as gotas de suor em sua testa escorriam, tanto pelo esforço que fazia quanto pelo nervosismo. De vez em quando, passava a mão para tentar secar. Embora tivesse sido abordado enquanto corria, continuou da mesma forma, pois internamente entendia que este não tinha sido o motivo da violência.
Assim que chegou, foi recepcionado pela secretária do mercado próximo à Borges. ‘‘Oi. Chegou bem cedo pra entrevista, né? Que bom, já sabemos que tu é pontual.’’ Franzindo os olhos, Robson não compreendera muito o que a moça de uniforme com as cores da empresa havia dito, pois o relógio de seu celular o acusava como atrasado. O tic-tac sucinto vindo da parede do escritório acabou chamando sua atenção. Algo estava errado. Seu olhar confuso se voltou para o aparelho novamente. ‘‘Não é possível. Filho da puta’’.
Temendo que o escutassem, guardou seu celular bem rápido no bolso. Ele estava adiantado. Aquele celular de origem duvidosa e sem nenhum crédito salvara seu dia. Já sentado e aliviado, a movimentação dos ponteiros do relógio de parede não lhe perturbava mais. Compreendia que há horas em que é preciso apenas esperar e deixar que tudo, de alguma forma, se resolva.
