Não é possível falar dos negros no século 21, sem remeter à infância daquela garotinha preta que cresceu em uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, cidade de colonização açoriana, filha de pais analfabetos, nascida na zona rural e vindo morar na região urbana com uns sete anos de idade.
Uma menina ingênua, sem conhecimento ou suporte familiar sobre questão de gênero e raça, pois seus pais eram humildes, sem o conhecimento de sua história e direitos. Viviam na condição de subalternos, eram humilhados, explorados, e achavam ser normal, pois eram pretos e pobres, sobreviver de forma honesta e digna era o que importava.
Enquanto a menina preta brincava com suas bonecas, seu corpo já chamava atenção do homem branco que a objetificava. Com uns dez anos de idade já foi assediada, recebendo ‘‘convites indecentes’’, ela na sua ingenuidade e inocência de uma menina que não tinha conhecimento, sabia que aquilo não era certo, mas sem entender o que se passava, conta para seu pai, e não vendo atitude dele, fica confusa, triste. Percebe desde pequena que terá que aprender a se defender sozinha.
Eu desde pequena ouvia falar das ‘‘Mulatas do Sargentel’’, que eram mulheres lindas, gostosas. Eu me sentia orgulhosa, afinal eu também era uma. O Brasil era o país do samba, das mulatas e do futebol – eu sendo citada mais uma vez. Inflava meu ego. Quando passava nas ruas ouvia me chamarem de gostosa e aquilo para mim era um elogio. No meu papel de mulher sem reconhecimento em minha ancestralidade, minha negritude.
Aos poucos fui crescendo, e aprendi sobre a objetificação do corpo preto, que tudo isso era resquício da época da escravização negra, onde a mulher preta era usada como objeto sexual por seu senhor, onde a mulher preta era estuprada, pelo homem branco, que detém o poder, enquanto a sua senhora, a mulher branca, estava ‘‘protegida’’ dentro da casa grande. No meio dessa descoberta também conheci o conceito da palavra ‘‘mulat’’, porque, nós mulheres pretas, éramos chamadas de mulatas, que tudo isso é um termo racista, depreciativo e pejorativo. O português foi buscar diretamente no latim mulus, no século XV, a palavra ‘mulo’, ou seja, animal híbrido, estéril, produto do cruzamento do cavalo com a jumenta, ou da égua com o jumento – pasmem. Foi um choque de realidade entender tudo isso. Além da questão da objetificação do corpo preto, que a mulher negra não era vista como uma mulher, mas sim como um objeto sexual, foi um golpe duro e difícil, saber que se eu não quisesse ser vista apenas como objeto sexual, iria ter que me blindar, e lutar, brigar com o mundo, escolher minhas armas.
O que mudou para nós mulheres pretas, como nossos corpos são vistos da época da escravização aos dias de hoje? Bom, não somos mais escravizadas, não pertencemos a um senhor, temos a ‘‘liberdad’’ de ir e vir, fazer nossas próprias escolhas. Porém se formos analisar as estatísticas, vemos que nós mulheres pretas, somos as maiores vítimas de violência doméstica, sexual, o maior número de desempregadas, e na escala social, somos aquelas que recebem um salário menor, mesmo exercendo função semelhante a uma mulher branca. Ainda somos vistas como objeto sexual, sofremos violência obstétrica, afinal a mulher preta é resistente, não precisa de certos cuidados, e quando exercemos alguma função, temos que provar duas vezes mais nossa capacidade, afinal, somos mulher preta em um mundo patriarcal, machista e racista.
As maiores mudanças que percebo, acontece dentro de nós mulheres pretas que aprendemos a duras penas a não se calar, lutar por direitos, sair às ruas de cabeça erguida e esfregar nossa negritude na cara dos racistas, não que antes não fizéssemos isso, fazíamos sim, se hoje somos fortes, empoderadas devemos às mulheres maravilhosas que lutaram e morreram para que hoje estivéssemos aqui para continuar quebrando paradigmas e fazendo a diferença que elas começaram, apesar do senhor, apesar do chicote, do tronco. Ainda temos a mesma sociedade machista e racista, mas manteremos nossas vozes para conquistar nosso direito à vida.
