Corpos negros são alvos

“A desvalorização e a alienação do negro estende-se a tudo aquilo que toca a ele:
o continente, os países, as instituições, o corpo, a mente, a língua, a música, a arte etc.”
Kabengele Munanga

O sistema escravocrata, as ideologias pseudo-científicas e a do embranquecimento, produzidas nos séculos XVIII e XIX, construíram a imagem de um corpo negro desqualificado. Por mais de três séculos o Brasil explorou a mão de obra africana com o objetivo de acumular riquezas e alavancar a economia de uma colônia que servia à metrópole européia, o reino de Portugal. Esse sistema escravocrata se baseou no sequestro e na subjugação de homens, mulheres e crianças arrancadas de África onde pertenciam a uma etnia, a uma cultura, falavam suas línguas e cultuavam suas religiões.

Foi o início da história de violência sobre os corpos negros. Para sustentar o sistema de exploração, métodos hediondos foram usados para manter diversas etnias subjugadas. Os brancos, donos de terra e poderes doados pela Coroa, precisaram incutir no imaginário de todos o caráter de inferioridade do negro. Teorias racistas foram adotadas para justificar a extrema violência aplicada. A atitude do colonizador racista era deixar evidente a diferença: brancos representavam a inteligência, a superioridade racial, a normalidade, enquanto os africanos e seus descendentes eram desvalorizados e seu aspecto físico ridicularizado.

Estereótipos e mitos foram criados e, com o tempo, assimilados por afro-descendentes com o intuito de contribuir para uma percepção negativa de si mesmos. A expressão “trabalhar como um negro”, era utilizada toda vez que o próprio branco achava que havia feito um trabalho duro. No entanto, assim que as ideias abolicionistas e as revoltas dos escravizados começaram a abalar o sistema, o mito do preguiçoso, perverso e ladrão passou a ser disseminado.

A data 13 de maio de 1888 comemora a libertação tardia dos cativos no Brasil e imediatamente no dia 14 de maio se delineia o futuro que a população, ex-escravizada, herdará para os seus descendentes até nossos dias. Na obra: Raízes do Conservadorismo Brasileiro, do escritor Juremir Machado da Silva, encontro a seguinte matéria retirada do Diário do Maranhão de 14 de maio de 1888:

“Centenas de indivíduos sem ofício, e que terão horror ao trabalho, entregando-se por isso a toda sorte de vícios, precisam ficar sob um rigoroso regime policial para assim poderem ser mais tarde aproveitados, criando-se colônias, para as quais vigore uma lei, como a que foi adotada na França, recolhendo a estabelecimentos especiais os vagabundos, sujeitando-os à aprendizagem de um ofício, ou da agronomia, para que mais tarde o país utilize bons e úteis cidadãos. Assim se praticou nos Estados Unidos depois da emancipação.” ( p.21)

O trecho acima recheado de estereótipos já classifica que os libertos “terão horror ao trabalho”.

Quatrocentos anos de acúmulo econômico produzido pelo corpo negro, criou centenas de fortunas e agora, esses mesmo corpos negros, são classificados como vadios. “Precisam ficar sob um rigoroso regime policial…”, já previam por antecipação que a população livre deveria ser perseguida por um aparato repressivo. Até hoje, século XXI, jovens negros são mortos pelo simples fato de serem negros. A abolição não foi acompanhada pela cidadania, aquisição de direito a trabalho remunerado. O corpo negro continua significando vadiagem, preguiça, perversidade. Por isso um jovem chamado Genivaldo, foi morto depois de ser parado pela polícia dirigindo a moto sem capacete, em seguida foi colocado no porta-malas da viatura e um policial jogou uma bomba de gás lacrimogêneo. Vários outros casos semelhantes aconteceram e continuam acontecendo; a vereadora Mariele Franco teve o corpo metralhado e até hoje a polícia não revela quem mandou matá-la. O crime no Brasil é ser negro.

Violências sobre os corpos negros não ocorrem só no Brasil. O recrudescimento das ideias racistas acontece também em outros países. Nos EUA, mortes motivadas pelo racismo são frequentes. A morte por sufocamento de George Floyd desencadeou uma indignação mundial. Parem de nos matar! É o grito que se ouve nas manifestações antirracistas. Lá como aqui há uma persistência de nos colocar nesse lugar de marginalização. A sociedade capitalista moderna continua querendo nos reduzir à condição de coisa. É comum que ouçamos palavras que desqualificam nossos cabelos: cabelo ruim! Parece uma ovelha! A mídia mostra desenhos de personagens com cabelos crespos de onde são tirados vários objetos de dentro dele, dando ideia de acúmulo de sujeira.

A necessidade de seguir padrões brancos de beleza, tais como cabelos alisados, é uma atitude violenta. Lembro que a primeira vez que passei pasta fria no cabelo, ou seja, produto químico, meu couro cabeludo queimou e acabei com uma ferida e perda de cabelo. A agressão sobre os corpos negros não produzem somente violência física, a psicológica gera dor e sensação de inadequação.

Os estádios de futebol são locais em que se ouve injúrias raciais com a finalidade de desestabilizar o atleta negro e seu time. Chamá-los de macaco ou fazer gestos imitando os símios é a crença nas ideologias racistas que visam desumanizar e coisificar os corpos negros.

Uma das reações por parte da população negra para desconstruir essas desqualificações foi utilizar o cabelo como instrumento de consciência política. Usar dreadlocks, cabelos crespos ou “black”, são formas de reforçar identidade e combater o racismo. O movimento “black power” que surgiu nos EUA na década de sessenta, veio com força e contagiou o mundo diaspórico. Lembro que na década de setenta a pessoa que me passava Henê nos cabelos, ao ver uma menina com cabelo crespo natural, me disse: Olha só que relaxamento! Eu achei a menina autêntica e bela, me senti horrível com aquela pasta pingando da cabeça. Cheguei em casa, lavei os cabelos e nunca mais usei qualquer química que me descaracterizasse como mulher negra.

Para acabar com essa herança colonial que ainda vigora em nosso tempo é necessário promover um novo modelo de sociedade. A sociedade como um todo precisa assumir atitudes antirracistas. Reagir de imediato a todo ato racista que pessoas, empresas ou governos manifestem. As novas tecnologias facilitam a repercussão das denúncias e a gravação do ato racista no momento em que ocorrem. A divulgação é o início, porém esbarramos no racismo institucional. A justiça atenua o caso para injúria racial, dificultando assim que a punição realmente sirva como um caráter de transformação.

A sociedade dominante branca precisa entender que o racismo não é um problema do negro, pois nós não criamos o racismo, insistem em continuar com novas formas de exclusão tentando nos alijar das benesses do progresso. Ação e reação devem ser a fórmula para acabar com essa violência. Reforçar nossa identidade coletiva, exigir punições, manifestar-se publicamente é a luta que devemos travar para que nossos corpos negros sejam respeitados.

Parem de nos matar!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Carrinho de compras
Rolar para cima